Nota técnica: Diretrizes sobre medidas de controle populacional de cães e gatos em meio a desastres em massa.

Nota técnica: Diretrizes sobre medidas de controle populacional de cães e gatos em meio a desastres em massa.

 

Em situações de desastres em massa de grandes proporções, como o que está acontecendo no Rio Grande do Sul, após o momento imediato (emergencial) de resgate das vidas humanas e animais, surge a preocupação com o rápido crescimento populacional de cães e gatos decorrente da concentração destes animais nos abrigos.

Além do descontrole populacional em si, em virtude da alta densidade de animais nos abrigos, enfrentam-se questões de territorialismo que impactam o bem-estar dos animaise a disseminação de doenças transmissíveis entre os animais e, entre eles e os humanos (zoonoses). Ainda, há a dificuldade do manejo dos animais em condições de atividade reprodutiva, especialmente das gatas e cadelas em ambientes onde também estão machos não castrados.

Entretanto, a questão deve ser enfrentada com racionalidade e priorização de ações, a fim de evitar agir precipitadamente, podendo contribuir para o agravamentodas condições individuais e coletivas em meio à crise já instalada, dificultando o trabalho dos voluntários, profissionais, organizações governamentais e não governamentais que estão atuando no local. Diante deste cenário,

Considerando o Plano Nacional de contingência de desastres em massa envolvendo animais, publicado pelo CFMV.

Considerando que a saúde animal é um dos pilares da saúde única, com reflexo direto na saúde pública e na saúde ambiental        , bem como na preservação da qualidade de vida das pessoas, dos animais e do meio ambiente;

Considerando que o período de atuação no resgate e assistência aos animais é variável e muito dinâmico, sendo bastante particular para cada tipo de desastreé impossível a determinação de um prazo exato para se permanecer na execução das ações, porém, decorridos quase 30 dias dainundação,alguns municípios já superaram a fase inicial de resgate e estão em condições mais estáveis ou até mesmo de desmobilização.

O Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) em complemento à nota técnica publicada em 14/05/2024 elaborou um conjunto de recomendações técnicas para o enfrentamento deste ponto sensível em meio aos desastres.

Primeiramente, há de se considerar a proporção do desastre e o tempo decorrido entre o início do evento climático e o efetivo resgate dos animais. Quanto maior o tempo, mais os animais resgatados, sob condições de estresse, estarão imunologicamente comprometidos, seja devido aos esforços para sobrevivência em condições extremas, pelas lesões ocorridas em razão do desastre em si, pela ruptura da convivência com seus tutores ou pela falta de alimentação e hidratação adequadas.

Na primeira fase do incidente (fase de resposta), a priorização dos recursos humanos e materiais deve estar voltada para a atenção à vida (garantia de sobrevivência), direcionando todos os recursos para os atendimentos de urgência e emergência.

É comum nestas situações a necessidade de racionamento de recursos como anestésicos, analgésicos, antibióticos, antiinflamatórios, fluidos, cateteres, equipos, dentre outros materiais necessários para procedimentos cirúrgicos de emergência e, portanto, o uso consciente de recursos deve ser a prioridade nos momentos iniciais do incidente.

Outro ponto a ser observado é que animais em diferentes condições sanitárias subitamente são aglomerados e, neste momento, além do comprometimento imunológico, aqueles que não possuem o calendário/esquema de imunização atualizado ficam vulneráveis ao acometimento de doenças infecto-contagiosas comuns, tais como cinomose, parvovirose, coronavirose e rinotraqueíte, debilitando clinicamente ainda mais os indivíduos com risco de óbito e propiciando a ocorrência de surtos dentro do próprio abrigo.

Além das doenças que acometem os animais, algumas zoonoses podem estar presentes e agravar o cenário em abrigos, como a esporotricose, leishmaniose, leptospirose, dentre outras, pois com a  alta densidade de animais aumenta o risco de surtos dessas doenças, podendo infectar médicos-veterinários e outros voluntários que estão na linha de frente, além de poder atingir a população em geral.

Dessa forma, entende-se que os primeiros esforços devem ser no sentido de equilibrar o status sanitário dos animais para, somente em uma etapa posterior, identificar aqueles elegíveis ao procedimento de esterilização cirúrgica.

Medidas como o controle de endo e ectoparasitas, bem como a estabilização e o tratamento clínico de animais doentes e, se possível, sua vacinação, devem ser priorizadas e preceder a realização de qualquer procedimento cirúrgico eletivo a fim de minimizar a disseminação de doenças entre os animais que estão sendo atendidos, haja vista a alta densidade e o alto risco.

Além dos requisitos técnicos e da disponibilidade de material, medicamentos e assistência veterinária para a realização das cirurgias, deve ser levada em consideração a disponibilidade de mão de obra técnica para os cuidados pós-operatórios, pois além da antissepsia já estar comprometida em uma situação de desastres, haverá necessidade de assistência especial aos animais submetidos à cirurgia, portanto, uma triagem eficiente dos que estão aptos ao procedimento é essencial.

Logo, reforçamos que, existem medidas que devem ser tomadas para minimizar o impacto populacional e que são compatíveis com a dinâmica do desastre, prévias à realização das cirurgias. Assim, a realização de mutirões de castração cirúrgica deve ser considerada em momento oportuno, de forma a não agravar o cenário ou gerar fatores complicadores.

Sob o ponto de vista do manejo populacional ético, orientamos que as ações sejam coordenadas em três etapas:

Primeira fase – Acolhimento, Identificação, Registro e Triagem

Como medida imediata, a triagem clínica para o acolhimento do animal em condição de abrigo ou direcionamento para um atendimento especializado de cuidados clínicos é necessária para minimizar a disseminação de doenças infectocontagiosas por animais que já chegam manifestando algum sintoma.  A disponibilização de um espaço reservado e o mais isolado possível para esses animais é essencial como medida preventiva (quarentena). Se for possível, é recomendado manter equipes diferentes para o tratamento desses animais, além do estabelecimento de medidas apropriadas de antissepsia e desinfecção.

A identificação e o registrodos animaisem banco de dadossão fundamentais para a realização de ações posteriores, incluindo, por exemplo, a restituição aos tutores responsáveis. Quanto mais detalhado for o registro mais completo e efetivo será o banco de dados. Sugere-se no mínimo, as seguintes informações: município de resgate; bairro de resgate; sexo; estimativa de idade; porte; raça; cor; condição de saúde no momento do registro; se aparenta ser castrado; e o número de registro (microchip ou numeração em coleira, por exemplo).

O preenchimento completo e correto deste banco de dados irá favorecer as etapas      subsequentes, tornando o processo mais eficiente e seguro, para os animais e para as pessoas envolvidas, como tutores,médicos-veterinários e outros voluntários. Inicialmente, o registro e a identificação podem ser realizados por meio de planilhas e fichas de identificação em papel, mas tão logo seja possível, a identificação por meio de microchipagem e utilização de softwares específicos é importante para as medidas posteriores de controle e manejo ético da população resgatada.

Uma vez acolhidos, devidamente identificados e registrados, a medida emergencial para iniciar o controle populacional é a segregação por sexo e idade. Se for viável, é recomendado que os machos sejam abrigados em endereço diferente das fêmeas e filhotes (acompanhados pelas mães) permaneçam separados dos adultos. Portanto, havendo mais do que um abrigo, é importante um direcionamento e articulação entre ambos para que os animais sejam transferidos com as respectivas fichas de identificação, preservando a informação do acolhimento e tornando os abrigos específicos por sexo.

Não sendo possível o abrigamento em locais distintos, sugere-se essa separação dentro dos próprios abrigos. Um outro aspecto que se recomenda que seja avaliado durante o processo de segregação dos animais, para além da questão populacional, é o comportamento de cada um, identificando e avaliando os submissos, os dominantes, os mais dóceis, os mais ariscos, aqueles que apresentam medo e aqueles que são mais socializados, por exemplo. A separação dos animais segundo temperamento e comportamento evita algumas condições que poderiam diminuir o grau de bem-estar destes animais abrigados, como por exemplo, brigas por território, competição por alimentação, estresse, medo, dentre outros.

Segunda fase – Vacinação, quarentena e restituição aos tutores

Há de se considerar que em meio ao desastre muitos animais permanecem mais tempo nos abrigos em virtude de que os tutores podem não ter tido a oportunidade de resgatá-los, seja porque não estavam em casa no momento do incidente, seja porque não localizaram seus animais ou não tiveram condições adequadas de efetuarem um resgate que não colocasse em risco sua vida e a do seu animal

Outra questão é a de tutores que vieram a óbito em decorrência do incidente e também animais que foram resgatados em logradouros públicos, que não eram domiciliados, então aparentemente não possuem um tutor responsável. Dessa forma, não é recomendado desconsiderar completamente a existência de um tutor ou presumir que o mesmo abandonou seus animais, pois além de haver vários fatores e possibilidades envolvidas, esse entendimento equivocado pode agravar a problemática, não colaborando para sua resolução.

Cada animal restituído ao seu tutor representa um alívio nas condições de saúde e bem-estar dos demais abrigados e também da equipe atuante.O tutor passa a se responsabilizar pela guarda dos seus animais e pela avaliação do melhor momento para castrá-los, se necessário, bem como pelos cuidados pós-operatórios;

Por isso, é recomendado aguardar um período mínimo de 30 dias* após o resgate e acolhimento em relação à castração, objetivando quatro questões importantes para a triagem dos animais:

  • Observação do surgimento de sinais clínicos de doenças infectocontagiosas e/ou zoonoses que possam aumentar o risco de um procedimento cirúrgico e uso de produtos para tratamento de endo e ectoparasitas;
  • Recuperação das condições gerais de nutrição, saúde e descanso dos animais;
  • Animais sem sinais clínicos de doenças e que após exame clínico realizado pelo médico-veterinário estejam em boas condições de saúde, devem ser vacinados.
  • Estabilizadas as questões emergenciais, é possível o uso dos recursos em procedimentos cirúrgicos de castração sem comprometer a vida, segurança e bem-estar tanto dos animais a serem castrados quanto dos demais abrigados.

 

Além dos aspetos considerados anteriormente, aguardar este tempo é importante para obter o máximo possível de informação sobre o animal vítima do desastre e evitar, por exemplo, a realização de procedimento cirúrgico em fêmeas já castradas, uma vez que a identificação dessa condição requer, muitas vezes, a realização de exames de ultrassonografia ou do relato do tutor. Adicionalmente, se o animal possuir uma condição preexistente que aumente o risco da cirurgia, a informação do tutor pode auxiliar em medidas preventivas que minimizem o risco operatório.

* A contagem do prazo se inicia do momento do resgate de cada animal, porém o médico-veterinário deve avaliar as condições clínicas de cada paciente antes da realização do procedimento e determinar se existe a necessidade de maior tempo para sua recuperação. Em abrigos onde as condições já estiverem estabilizadas e os animais estiverem registrados, identificados e vacinados, o médico-veterinário deverá avaliar a condição clínica dos animais e, se estiverem aptos, promover a esterilização cirúrgica.

Terceira fase – Esterilização cirúrgica do remanescente de animais

Para realização dessa etapa, devem ser atendidos, no mínimo os seguintes requisitos:

  • Avaliação clínica do animal, atestando que o mesmo está apto a ser submetido ao procedimento cirúrgico;
  • Condições estruturais e de equipamentos do setor cirúrgico;
  • Locais adequados para recuperação anestésica e equipe para acompanhamento pós-cirúrgico;
  • Autorização do responsável pelo animal (caso o animal não esteja sob a tutela do Estado).

Esta fase deve ocorrer no período em que já existe uma estabilização das condições clínicas e sanitárias tanto do local quanto dos animais.

Nesta etapa é essencial que o poder público se responsabilize legalmente pela tutela dos animais ou reconheça a tutela de instituições, dando segurança para a atuação dos profissionais e entidades que estão provisoriamente prestando assistência aos animais, evitando que eventuais intercorrências no procedimento resultem em ação criminal ou de reparação contra estes agentes.

Para a triagem dos animais remanescentes quanto ao risco anestésico recomendam-se as classificações utilizadas pelos programas de saúde coletiva que promovem castração      (mutirões de castração):

  • não castrar animais idosos;
  • não castrar animais obesos;
  • castrar cães a partir de 04 meses de idade;
  • castrar gatos a partir de 05 meses de idade;
  • castrar somente animais saudáveis ao exame clínico realizado pelo médico-veterinário.

É recomendado que nas cirurgias sejam utilizados métodos minimamente invasivos, para facilitar a recuperação dos animais e minimizar os riscos de infecções. Os procedimentos cirúrgicos podem então ser realizados em estruturas temporárias desde que adaptadas para tal finalidade, ou em estabelecimentos veterinários que possuam condições adequadas de realização, seguindo as normas vigentes.

As diretrizes para a realização de mutirões de castração encontram-se disponíveis na Resolução CFMV nº 1596/2024.

Fonte: CFMV.

Dr. Fabio Stevanato

Médico Veterinário, Empresário e Escritor - CEO e Autor ImpulsoVet.