Por dentro da vida quase aquática das onças-pintadas da Amazônia.
Uma onça descansa entre os galhos de uma árvore na Reserva Mamirauá, em Tefé, no Amazonas.
Essa habilidade, no entanto, pode mudar de maneira surpreendente quando se trata das onças que vivem em partes alagadas da Amazônia. Publicado em 2021 no periódico Ecological Society of America, um estudo realizado por pesquisadores do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá trouxe nova percepção sobre as onças-pintadas na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, localizada em Tefé, no Amazonas.
“A grande descoberta é que as onças da reserva vivem meses no alto das árvores, a cada ano. É um comportamento que não havia sido documentado até então”, diz Emiliano Ramalho, ecologista e principal autor do estudo.
Ramalho explica que, em geral, a família dos grandes felinos busca nas árvores descansar, se alimentar e evitar predadores ou competidores (como fazem os leopardos e os pumas). Outras espécies, incluindo os tigres e onças, podem até caçar animais arbóreos, aquáticos e semiaquáticos.
Mas o esperado é que esses grandes felinos sempre retornem ao solo – seja depois de dias ou horas. “Eles são animais terrestres e a maioria de suas presas está no chão, então eles têm que descer para caçar”, diz Ramalho.
Grandes felinos, como as onças-pintadas, sobem em árvores para repousar, evitar competidores e até levam suas presas para comerem tranquilas entre as copas, dizem os pesquisadores.
O estudo do Mamirauá mostrou que as onças-pintadas se adaptaram muito bem à região alagada da várzea amazônica. Na imagem, um indivíduo dorme enquanto é observado por pesquisadores.
Como vivem as onças na várzea amazônica?
A Reserva Mamirauá, ilhada entre os rios Amazonas e Japurá, é tomada pelo ecossistema de várzea. Marcos Brito, ecólogo e pesquisador que também trabalha no grupo de felinos do Instituto Mamirauá, explica que esse tipo de vegetação se trata de planícies fluviais cujas florestas são inundadas periodicamente por rios de água branca, ou seja, barrentas.
Os cerca de 11 mil quilômetros quadrados da reserva ficam alagados durante três a quatro meses no ano, na estação anual de cheias da bacia do Amazonas, de junho a setembro. A alta nos níveis dos rios deixa o habitat das onças-pintadas debaixo de 10 metros de água, em média.
“As florestas de várzea amazônicas são áreas difíceis de se imaginar um grande felino vivendo bem. Eles precisam se alimentar com uma quantidade relativamente grande de alimento, de bichos que estão no chão. E durante o período de cheias não existe chão”, explica Brito.
A reserva Mamirauá abriga mais de mil onças-pintadas, de acordo com levantamentos do instituto. “São mais indivíduos do que na Mata Atlântica inteira”, afirma Ramalho. Estima-se que, em todo o bioma da Mata Atlântica, restam menos de 300 onças-pintadas.
Onças-pintadas da Reserva Mamirauá vivem acima das árvores durante os meses de junho a setembro, quando a região fica com cerca de 10 metros de água acima do solo.
A capacidade das onças-pintadas amazônicas de viverem nessa área de várzea gerava uma grande dúvida. “O que elas faziam quando a água subia era uma incógnita ecológica”, conta Ramalho, que atua no Instituto Mamirauá desde 2004.
A hipótese inicial dos pesquisadores era a de que, quando o solo começa a ser alagado, os felinos deixariam a várzea à procura de um local seco, com mais opções de presas. “No entanto, tínhamos relato das comunidades locais de que os animais, na verdade, não saiam da área. Então buscamos entender como.”
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A onça-pintada que deu à luz na copa das árvores
Para entender como as onças-pintadas sobreviviam ao período de cheia, a equipe de pesquisadores começou a monitorar os movimentos de uma fêmea adulta, que estava grávida à época. “O acompanhamento por meio de colares de GPS demonstrou que essa fêmea ficou na região da reserva o ano inteiro, até mesmo dando à luz durante a cheia”, conta Ramalho. “Isso só seria possível se ela tivesse vivido acima da água, nas árvores, nadando de árvore em árvore e se alimentando nas copas.”
Um filhote de onça-pintada fotografado entre as árvores durante expedição pela Reserva Mamirauá/AM.
Depois da fêmea, a equipe monitorou mais oito animais, quatro fêmeas e quatro machos, durante seis anos. “Na sequência, observamos que não só as fêmeas e os filhotes permaneciam na várzea, mas os machos também”, contou Ramalho.
O estudo confirmou que as onças dessa região amazônica vivem uma vida praticamente aquática, nadando de dois em dois dias, em média, e se alimentando de animais arbóreos. “Elas literalmente não pisam no chão por três meses ao ano”, diz Ramalho.
Para o pesquisador Marcos Brito, que hoje trabalha no monitoramento contínuo desses animais, trata-se da “evolução de um estilo de vida único para um grande predador terrestre”.
“Essa adaptação é algo realmente impressionante e muito raro. As onças-pintadas são animais que surpreendem a todo momento”, comenta Sebastián Di Martino, diretor de Conservação da Fundação Rewilding Argentina, sobre o comportamento observado em Mamirauá. A onça-pintada é um dos alvos dos programas conservacionistas da organização sem fins lucrativos, que visa reverter a extinção da espécie.
Di Martino afirma que, além de ser um comportamento raro, a descoberta da equipe brasileira reforça a habilidade das onças-pintadas de sobreviver em diversos ambientes. “Elas ocorrem em praticamente todo o continente americano, do sul dos Estados Unidos ao norte da Patagônia. E usam diversas estratégias de adaptação, vivendo em habitats muito diferentes.”
Os maiores felinos das Américas se alimentam desde grandes mamíferos, como as capivaras, até répteis como jacarés. Na várzea, jacarés-de-óculos e bichos-preguiça são as principais presas.
Um dos exemplos da capacidade de adaptação das onças é o rol de espécies que entram na sua dieta. De acordo com Di Martino, a alimentação das onças-pintadas é exclusivamente carnívora, sendo composta principalmente de mamíferos médios a grandes. As espécies de presas variam conforme o local de ocorrência do animal.
“Elas se alimentam de grandes espécies de mamíferos, répteis e pássaros. Mas, em lugares como o Pantanal, suas presas principais são capivaras e antas. Já no parque Iberá, na Argentina, elas comem bastante cervos-do-pantanal”, exemplifica Di Martino.
No caso das onças da Mamirauá, 80% da dieta é composta por répteis, como os jacaré-de-óculos, e de mamíferos arborícolas, como as preguiças-de-três-dedos. “Durante o período alagado, as preguiças viram o prato principal”, afirma Ramalho.
A adaptação ao ambiente também se espelha no tamanho desses animais. De acordo o estudo do Instituto Mamirauá, as onças-pintadas que vivem nas várzeas amazônicas são relativamente pequenas quando comparadas às que habitam outras áreas do continente.
“Os machos do nosso estudo tinham em média 53,5 kg. O maior já capturado na Reserva pesava 72 kg”, diz Ramalho. Já as onças do Pantanal ou do Chaco argentino podem chegar a mais de 100 kg.
Perigo de extinção: como a várzea preserva o maior felino das Américas
Segundo os pesquisadores do Mamirauá, o estudo também levanta questões sobre como a preservação de ambientes de várzea implica na conservação de populações de onça-pintada.
“Observar a interação única entre as onças e a várzea têm gerado dados que aumentam a relevância dessas florestas para a preservação de uma espécie que é símbolo da biodiversidade brasileira”, afirma Ramalho.
Atualmente, de acordo com o Instituto Mamirauá, as florestas de várzea estão entre os ecossistemas mais ameaçados na Amazônia. Isso porque esse ambiente alagado é super produtivo, o que gera um conflito de interesses na região.
“É uma área que possui um solo fértil para plantações, como mandioca, arroz e melancia, conta com espécies de árvores de interesse comercial e abriga uma grande diversidade e densidade de animais aquáticos, aumentando o potencial de pesca desses locais”, explica Ramalho.
Principais ameaças às onças-pintadas
Essas ameaças não ocorrem apenas na várzea amazônica. Conflitos com as atividades agropecuárias e a perda massiva de ambientes pela exploração de recursos naturais são os principais fatores que afetam as populações de onças por todo o continente americano, segundo explica Di Martino.
“Algumas produções humanas que destroem os habitats das onças são a mineração em larga escala, a exploração de gás natural, os cultivos intensos – como o de soja – e as grandes barragens hidrelétricas”, diz o pesquisador argentino.
Em toda a América, as onças-pintadas já foram extintas em locais como Uruguai e El Salvador, segundo dados da Fundação Rewilding. Nos Estados Unidos, sobram poucos animais, em sua maioria machos solitários. Na Argentina, sobrevivem entre 200 e 250 indivíduos. “Mais de 90% da área de distribuição das onças-pintadas na Argentina foi perdida por conflitos pelo terreno”, diz Di Martino.
Além desses riscos, as mudanças climáticas também são uma preocupação. Dados do Instituto Mamirauá apontados pelos mostram que o regime de períodos secos e cheios da floresta de várzea – ameaçado pelo aquecimento global e outras atividades humanas – são importantes para a reprodução e manutenção das populações de onças-pintadas na Amazônia.
“Nossa esperança”, diz Ramalho, “é que trabalhos como esse possam mostrar a importância da manutenção desses habitats na conservação da onça-pintada.”
Fonte: National Neographic.