Cobra-de-duas-cabeças chegou a Fernando de Noronha flutuando na água e sobreviveu a erupções vulcânicas, revela estudo do Butantan.

Cobra-de-duas-cabeças chegou a Fernando de Noronha flutuando na água e sobreviveu a erupções vulcânicas, revela estudo do Butantan.

Primeira análise filogenética das anfisbenas da ilha indica que elas chegaram ao arquipélago há 12 milhões de anos

O arquipélago de Fernando de Noronha é o lar de um pequeno réptil esguio e desprovido de patas que lembra muito uma cobra, popularmente chamado de cobra-de-duas-cabeças. As anfisbenas de Fernando de Noronha (Amphisbaena ridleyi) são de fato répteis, mas não são serpentes e nem têm duas cabeças. Sua origem evolutiva é misteriosa, dado que se trata de um animal terrestre que passa a vida enterrado, cavando seus túneis. Como então seus ancestrais fizeram para cruzar os 375 quilômetros de oceano que separa Fernando de Noronha da costa nordeste do Brasil?

Pesquisadores do Instituto Butantan encontraram uma resposta para esse enigma. As anfisbenas ancestrais que colonizaram Noronha muito provavelmente vieram flutuando desde a foz do rio Amazonas, há cerca de 12 milhões de anos, segundo o estudo publicado na revista Molecular Phylogenetics and Evolution. O trabalho foi conduzido pelo herpetólogo Felipe Grazziotin, do Laboratório de Coleções Zoológicas do Butantan, em coautoria com a bióloga Roberta Graboski, do Museu Emílio Goeldi, de Belém, com Tamí Mott, da Universidade Federal de Alagoas, e Miguel Trefaut Rodrigues, do Departamento de Zoologia da Universidade de São Paulo.

De acordo com Felipe, a presença da anfisbena no arquipélago de Noronha é um mistério que envolve desafios evolutivos, biogeográficos e históricos.

 

As grandes navegações

Quando o navegador italiano Américo Vespucci – que daria seu nome ao Novo Mundo – descobriu o arquipélago de Fernando de Noronha em 1503, descreveu-o “contendo tantos pássaros, tanto marinhos quanto terrestres, que eram sem número… não vimos nenhum outro animal, exceto ratos muito grandes, lagartos com duas caudas e algumas cobras.”

As tais cobras, como se pode imaginar, não eram serpentes, mas as anfisbenas Amphisbaena ridleyi. Seu nome homenageia o naturalista britânico Henry Nicholas Ridley, que em 1887 estudou a fauna e a flora de Noronha, levando exemplares para descrição no Museu Britânico, entre eles a anfisbena.

 

Origem da diversidade

Há mais de 200 espécies de anfisbenas espalhadas pelas Américas, África, Europa e Oriente Médio. Todas são carnívoras e a maioria mede menos de 15 centímetros. A maior diversidade de anfisbenas encontra-se na América do Sul e no Caribe. No Brasil, até o momento, foram descritas 72 espécies.

A anfisbena é um réptil furtivo que vive cavando seus túneis. Há muito tempo, a visão deixou de ser um sentido importante para a sua sobrevivência. Adaptado à escuridão, o animal tem olhos pequenos e enxerga mal. Como a cabeça e a cauda são muito parecidas, ela acabou ficando conhecida como cobra-de-duas-cabeças.

“As anfisbenas que colonizaram Noronha vieram flutuando. Isso não é incomum. Há diversos casos de animais que foram achados em alto-mar sobre troncos de árvores ou grandes tufos de vegetação”, explica Felipe. Mas de onde exatamente vieram as anfisbenas que chegaram flutuando ao arquipélago? E quando?

Para identificar a origem dos ancestrais da anfisbena noronhense, os cientistas tinham algumas hipóteses: poderiam ser náufragos que vagaram à deriva desde o Caribe ou da América do Sul, ou ainda poderiam ter sobrevivido a uma travessia de milhares de quilômetros, desde a África.

 

Dados moleculares

Os pesquisadores sequenciaram o material genético de três Amphisbaena ridleyi coletadas em Noronha e compararam as amostras com o DNA de outras 79 espécies de seis famílias de anfisbenídeos. A partir disso, foi possível construir a árvore filogenética que revela a história evolutiva das anfisbenas.

A análise sugeriu que o ancestral comum mais recente de todas as 200 espécies de anfisbenas viveu há 88 milhões de anos, no período Cretáceo Médio. Ou seja, conviveu com os dinossauros. Não por acaso, foi apenas após a extinção dos répteis gigantes há 66 milhões de anos que teve início a grande diversificação do grupo, dando origem às seis famílias de anfisbenas que conhecemos hoje.

Os dados moleculares sugerem que a família Amphisbaenidae, a maior de todas, com mais de 180 espécies espalhadas pela América do Sul, Caribe e África, começou a se diversificar há 42 milhões de anos, no período Eoceno.

 

Primeira hipótese

De acordo com Felipe, o trabalho revelou que a linhagem mais aparentada com A. ridleyi consiste em três espécies endêmicas da Ilha Hispaniola, ou Ilha de São Domingos, onde ficam a República Dominicana e o Haiti.

Análises moleculares sugerem que o ancestral comum das espécies dominicanas e da A. ridleyi se separou das linhagens sul-americanas há 21 milhões de anos, no início do período Mioceno. Não se sabe exatamente como elas foram parar em Hispaniola, mas acredita-se que possa ter sido “pulando” de ilha em ilha, pois evidências geológicas mostram que, naquela época, havia uma ponte de ilhas hoje desaparecidas, e que se estendia da América do Sul até o Caribe.

O último ancestral comum das anfisbenas de Hispaniola e de Fernando de Noronha viveu há 13,6 milhões de anos – isso não quer dizer que seus descendentes povoaram Noronha na mesma época. O arquipélago foi formado por antigos vulcões que emergiram do fundo oceânico, e as rochas mais antigas datam de 12,4 milhões de anos. Existe, portanto, um intervalo de 1,2 milhão de anos, período no qual os ancestrais diretos da anfisbena noronhense poderiam ter sobrevivido colonizando uma sucessão de ilhas hoje desaparecidas. Essas ilhas poderiam ter criado uma passarela biogeográfica do Caribe até Noronha.

Contra esta hipótese há o fato de, tanto hoje quanto no passado, a Corrente Norte do Brasil corre pelo litoral brasileiro no sentido leste-oeste, do Nordeste para o Caribe. Ora, para percorrer um colar de ilhas, as anfisbenas teriam necessariamente que ser carregadas de ilha em ilha em tufos de terra boiando à deriva –  e na contracorrente, o que seria algo bastante improvável.

 

Segunda hipótese

Os pesquisadores também sugerem que o ancestral comum das anfisbenas de Hispaniola e de Noronha tenha origem amazônica. Existe uma corrente marinha que corre no sentido oeste-leste, chamada Contracorrente Equatorial Norte. Ela é caracterizada por sua extrema sazonalidade, tendo a sua dinâmica afetada por fenômenos climáticos como o El Niño. Nas circunstâncias corretas, a Contracorrente Equatorial Norte poderia muito bem ter carregado as anfisbenas desde a foz do rio Amazonas até Noronha.

A conclusão, segundo Felipe, é que esse é o cenário mais provável para a origem das anfisbenas do arquipélago. “Há 13,6 milhões de anos, o ancestral comum de A. ridleyi e das espécies de Hispaniola vivia na região da foz do Amazonas. De lá partiram duas levas de migrantes: os animais carregados pela Corrente Norte do Brasil na direção oeste, e que foram dar no Caribe, e aqueles levados para leste pela Contracorrente Equatorial Norte, até as praias de Noronha, o que aconteceu necessariamente após a formação do arquipélago, há 12,4 milhões de anos.”

Fernando de Noronha está localizada em um edifício vulcânico que se eleva por 4 mil metros desde o leito oceânico. Essa grande montanha foi formada durante dois eventos vulcânicos: o processo magmático inicial conhecido como Formação Remédios, com rochas datadas entre 12,3 e 8 milhões de anos, e a Formação Quixaba, com rochas entre 4,2 e 1,5 milhão de anos.

“Nosso cenário biogeográfico sugere que A. ridleyi se estabeleceu em Noronha logo após a formação do arquipélago. As erupções magmáticas da Formação Quixaba provavelmente impactaram a viabilidade da espécie. Supomos que a baixa diversidade genética de A. ridleyi sinaliza um gargalo populacional associado aos eventos vulcânicos da Formação Quixaba”, diz o pesquisador. Um gargalo populacional acontece quando grande parte de uma população desaparece de forma repentina, restando aos poucos sobreviventes a tarefa de resgatar a espécie de uma quase extinção.

 

Futuro incerto

As Amphisbaena ridleyi são animais resilientes. Resultados de uma improvável odisseia marítima, sobreviveram a erupções vulcânicas e à chegada do homem e suas espécies invasoras, há 500 anos. Mas hoje elas correm risco de extinção.

O impacto do turismo nas manchas remanescentes de vegetação natural e a contínua alteração das características do solo são as principais ameaças à fauna terrestre endêmica. Além disso, espécies invasoras, incluindo ratos, camundongos e gatos selvagens, têm sido um sério problema para a fauna nativa das ilhas.

Com base na sua pequena área de distribuição, baixa variabilidade genética e no crescente impacto sobre os ecossistemas naturais de Fernando de Noronha, os autores do estudo afirmam que a anfisbena de Ridley é uma espécie criticamente ameaçada, mas até o momento não consta da lista de espécies ameaçadas de extinção no Brasil.

Fonte: Instituto Butantan.

Dr. Fabio Stevanato

Médico Veterinário, Empresário e Escritor - CEO e Autor ImpulsoVet.