Nós e os animais: humanização de pets – Parte 3.

Nós e os animais: humanização de pets – Parte 3.

Quando observamos a fauna, podemos ver como as espécies sempre se
adaptam a todas as situações que ampliem, por exemplo, o acesso aos alimentos, à
reprodução da espécie e às situações de sobrevivência. E isso não se limita aos
nossos pets. Não faltam pesquisas e publicações científicas que nos tragam as mais
variadas observações desses comportamentos na natureza.
Um vídeo* publicado por pesquisadores mostra dois macacos-prego que são
alimentados por uma tratadora. A mulher coloca uma pedra na jaula de cada um e,
quando eles a devolvem para ela, são recompensados com um petisco. Para um, é
oferecido pepinos e, ao outro, uvas. O macaquinho à esquerda do vídeo devolve a
pedra e a moça reforça o acerto dele com um pedaço de pepino. Na jaula do lado
direito está outro macaquinho. A pessoa repete a mesma situação, porém usa uvas
como recompensa. O macaquinho alimentado com pepino vê o vizinho sendo
reforçado com a fruta, que possivelmente é mais apetitoso para eles do que rodelas de
pepino.
E aí, o bicho literalmente pega fogo: o macaquinho que comeu pepino
chacoalha a jaula, agita-se, joga fora o pepino e manifesta-se, quase dizendo “poxa,
que injusto!”; acho que ele diria isso. Novamente ela repete o exercício: primeiro o
pepino do injustiçado, depois, uvas para o colega ao lado. Novamente o macaco à
esquerda fica indignado, bate na jaula, joga fora o petisco, em clara manifestação de
insatisfação. Será que ele entende o que é justo e injusto? Como explicar a evidente
revolta do macaquinho pelo fato de o outro receber algo mais saboroso do que
pepinos?
O filósofo francês René Descartes, no século XVII, entendia que pensar e ter
consciência do que pensamos era, por si só, um fato elucidador de que o ser humano
é capaz de compreender tudo: “penso, logo existo”. Nessa máxima, em latim, “cogito,
ergo sum”, o cogitar é a certeza que o indivíduo tem de que ele pensa e de que existe
como um ser pensante. E aí fica a dúvida: o macaco-prego reforçado com o pepino
pensou? Ele entendeu que estava sendo injustiçado?
Desde o surgimento do pensamento cartesiano, o homo sapiens é entendido
como um ser racional, capaz de entender, interpretar, conhecer, estudar, julgar,
simbolizar, passar conhecimento para outros, e isso é uma verdade. Faz sentido olhar
para um animal qualquer e pensar que cultura, moral, justiça e outros conceitos
humanos se aplicam a eles? E é a partir dessa dúvida que a gente começa a se
aproximar da ideia de que o adjetivo “humano”, talvez, vá muito além da nossa
característica de pensarmos e de reproduzirmos o que sabemos.
Outra situação curiosa é a de quando passamos a observar a linguagem dos
nossos cães e de como eles agem e demonstram emoções. Todos os dias, pela
manhã, a minha cachorra Panda me cumprimenta fazendo espontaneamente um
playball bem lento (ela se estica toda para trás, empinando o bumbum e abaixando as
patas dianteiras). Eu interpreto isso como aquela espreguiçada da manhã, me dizendo
“bom dia, estou com uma preguicinha…”, e fico contente, pois ela só faz para mim,
nem ligando para cumprimentar as outras pessoas da casa. Seja lá o que a Panda
quer me dizer nessa hora, ela está se comunicando comigo. A gente sabe que para
dizer algo, não precisamos necessariamente falar: gestos representam muita coisa
também.
Uma busca rápida pela internet nos mostra uma série de vídeos que nos
indicam que outras espécies são capazes de gerar novas atitudes e ainda ensinarem
essas práticas para outros entes da mesma espécie. Na ilha de Koshima, no Japão,
há 60 anos atrás, um macaco chamado Imo teve uma ideia, que não se sabe de onde
veio. Ele e os outros macacos tinham por hábito comer batata-doce. Por uma razão
qualquer, um certo dia, Imo resolveu fazer algo que mudaria drasticamente a vida de
todos os outros macacos da ilha: resolveu lavar a batata antes de come-la**. As
batatas estavam sempre sujas de terra e Imo achou melhor lava-la para melhorar a

mastigação (o desgaste dos dentes era uma das consequências de comer batatas
enlameadas, observada pelos pesquisadores). Alguns meses depois, os cientistas
notaram a mudança e perceberam que outros macacos passaram a fazer a mesma
coisa: lavar as batatas com uma das mãos e, com a outra, retiravam a lama grudada
na casca.
O fato de os macacos de Koshima continuarem lavando as batatas ainda hoje
(resultado da atitude de Imo, que descobriu que era melhor comer a batata-doce
lavada), para vários cientistas, é o suficiente para compreender que outras espécies
têm ações que nos lembram práticas culturais. E ainda mais importante: eles não só
as criam como são capazes de ensina-las a outros indivíduos da espécie.
Dentro dessa perspectiva, começa a ficar difícil acreditar que somente nós,
humanos, somos o que somos: pensantes, culturais e inteligentes. Um primatologista
chamado Franz de Waal***, que trabalha há décadas observando primatas e
analisando como esses animais demonstram senso de moralidade, justiça (seu
exemplo é o vídeo dos macacos-prego que falo acima) e outros atributos que são, por
definição, humanos. Em seus trabalhos, o cientista tenta mostrar que estamos muito
longe de realmente entendermos até onde vai a capacidade cognitiva de um animal.
Será que nossos cães podem ter cultura, entender o que é justo, moral,
desigual? Em pesquisas pelo mundo afora, em diversas áreas, o que se tem visto é
que ainda estamos engatinhando na nossa compreensão sobre outras espécies.
Nessa andança incipiente, o que temos descoberto é que outras espécies são muito
hábeis em demonstrar sentimentos e práticas que durante milênios definimos como
sendo características humanas.
O tema, no entanto, não é pacífico. Gera divergência e oposição de vários
setores da ciência. Eu entendo que a questão central não é identificar a capacidade de
outras espécies de se igualarem aos humanos. Por exemplo, é complicado pensar em
cultura animal, visto que essa implica na prática do homem poder representar e
simbolizar e, isso, até onde se sabe, não foi observado em outras espécies.
No entanto, o que motiva falar de humanização de pets é poder observar
quantos atributos dos nossos cães nos surpreendem, quanto ainda temos que
aprender sobre o comportamento animal, sem subestimar e sem entender os seres
vivos como seres incapazes de adaptação e transformação.
Para encerrar, eu gostaria de dizer que eu sempre quis escrever um texto sobre
esse assunto. Desde 2019, quando conheci e passei a estudar sobre adestramento
comportamental e o método positivo de treinamento de animais, eu me pego
constantemente vendo os cães e outros animais estão longe da nossa plena
compreensão sobre quem são.
A pergunta é, se eles têm cultura, moral, senso de justiça, se sabem escolher,
se sofrem, nada disso podemos afirmar. Contudo, como adestradora e também como
antropóloga (tarefa que também me fez e faz aprofundar no universo das pessoas e
do mundo em que vivem), só consigo pensar que é preciso observar mais, sentir mais,
olhar mais para conhecer os animais. Cada um deles é único. De uma mesma ninhada
de cães, cada filhote sai de um jeitinho próprio. E por todas essas maravilhas que
vemos e ouvimos, eu sinto e busco exercitar a empatia e o respeito à dignidade e à
vida de qualquer ser vivo.
Dessa forma, posso concluir que a questão acerca da humanização de pets
revela múltiplas facetas, e todas elas caminham para um exercício de maior empatia
dos seres humanos com o mundo animal, exercício esse moral e ético, de compaixão,
de respeito. Humanizar nesse sentido é atribuir algo a mais que a existência corporal a
um cachorro ou gato; falar em alma, espírito, ânima etc, nos levaria a um debate
filosófico inacabável e sem consenso.
Ainda assim, vemos nos animais características que vão além da matéria;
assim como nós, o animal sofre, sente frio, tem fome, reclama, é capaz de demonstrar
afeto, agressividade, ou seja, tudo isso nos leva, necessariamente, a compreender

que o mundo animal transcende o corpo e existe e percebe o mundo assim como nós
e dentro das limitações de cada espécie animal.
Bem, aqui retorno ao exemplo que trouxe na primeira parte da discussão, a
história do ex-ministro Magri e sua cadela Orca. Não tenho dúvida de que ela era um
ser humano para ele, igualzinho a qualquer outra pessoa. Com certeza, o ex-ministro
não tinha familiaridade com toda essa discussão, ou então nem estava preocupado
em levantar a bandeira em prol desses temas.
Entendo que a lição que nos cabe é repensar se o adjetivo “humano” merece
ampliar seus sinônimos, significados e definições. Humanização de animais é muito
mais um exercício de nos colocarmos no lugar de um outro ser vivo, de exercitar a
nossa empatia e reconhecer que, assim como desejamos ser respeitados como
indivíduos humanos, qualquer outro ente também merece respeito da humanidade. O
Magri estava certo e a Orca era humana para ele e, naquela situação, ele demonstrou
respeito por esse ser vivo, apesar de ter feito isso de uma maneira não muito correta e
ética. Todavia, o gesto em si mostrou uma relação de carinho, cuidado e o amor do
ministro com sua companheira de quatro patas.
Até mais!
Bianca
Notas:
* Vide https://www.youtube.com/watch?v=JJsKS4DQ95E.
**Sobre os macacos de Koshima: https://www.qualittas.com.br/blog/index.php/animais-tambem-tem-
cultura-aponta-estudo/. No Youtube, é possível ver o vídeo dos macacos no link
https://www.youtube.com/watch?v=uZ8HCdgEwCs.
***O vídeo traz uma parte de uma palestra de Franz de Waal, na qual ele faz uma reflexão sobre o
comportamento moral em animais. Vide o link: https://www.youtube.com/watch?v=FDRX2QQ_Xo8

Bianca Souza.

Bianca Souza

Socióloga, Msc. Antropologia, Dra. História Social (PUC), Dra. em Ciências da Informação (CI / UNESP) e Pós Doc. CI (UFF) e Pós Doc. Museologia (USP), Profissional em adestramento, comportamento animal e relação humanos e Pets, escritora e editora de mídia digital sobre adestramento comportamentalista.